A prática do uso comum de recursos não é, de maneira nenhuma, nova, e é utilizada pela humanidade há centenas de anos. No entanto, o que se chama hoje de economia compartilhada ou economia do compartilhamento vem ganhando impulso, principalmente em função das novas tecnologias de informação e comunicação. “O advento da internet possibilitou estar conectado o tempo todo por meio de aparelhos celulares. A conectividade funcionou como um catalisador para a evolução da economia compartilhada”, observa Martin Bodewig, diretor do Centro de Competência Automotiva da Roland Berger Strategy Consultants do Brasil. A busca das novas gerações de consumidores por serviços que ofereçam soluções simples, flexíveis e ambientalmente sustentáveis também contribui para a tendência.
Um estudo divulgado pelo escritório da Roland Berger em Munique afirma que a mobilidade é o setor desta “nova economia” com o maior potencial de crescimento nos próximos anos. Parte desse dinamismo vem do fato de as soluções de mobilidade compartilhada criarem maneiras de usar e ligar diferentes infraestruturas de transporte que já existem, como os estacionamentos, carros, bicicletas, etc. De acordo com a consultoria, uma nova cultura de consumo, que estimula o uso em vez da posse de bens e produtos; a escassez de recursos, como matérias-primas, dinheiro e espaço urbano; a digitalização; e tendências demográficas como a urbanização são os principais fatores socioeconômicos que impulsionam o crescimento da mobilidade compartilhada.
O estudo destaca quatro segmentos que devem experimentar grande expansão: o compartilhamento de carros, cuja projeção de crescimento de mercado é de 30% ao ano e que deve gerar 3,7 bilhões a 5,6 bilhões de euros em receitas mundialmente em 2020; o compartilhamento de caronas, que apresenta a maior projeção de crescimento ao ano – 35% –, com receitas estimadas em 3,5 bilhões a 5,2 bilhões em 2020; o compartilhamento de bicicletas, que deve crescer 20% anualmente e ter receitas de 3,6 bilhões e 5,3 bilhões em cinco anos; e o compartilhamento de estacionamentos, com estimativa de crescimento de 25% anuais e de receitas de 1,3 bilhão a 1,9 bilhão em 2020.
Potencial no Brasil
Martin Bodewig acredita que o Brasil apresenta um potencial considerável para o desenvolvimento da economia compartilhada. Um dos fatores indicativos disso é o grande número de telefones celulares: “Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicado neste ano mostra que existem mais smartphones do que computadores e tablets no Brasil – são 154 milhões de aparelhos celulares que poderiam servir de ponte de ligação entre o mercado e seus consumidores”, salienta o executivo.
O Brasil também é um dos países que mais utilizam as redes sociais no mundo. De acordo com Bodewig, a familiaridade do brasileiro com o modus operandi das redes sociais permite que a confiança em avaliações feitas por outros usuários ganhe mais força na hora da decisão da aquisição de um produto ou serviço. “As soluções compartilhadas precisam destas avaliações para operar eficientemente – por exemplo, eliminando usuários ruins por meio delas – e irão encontrar muitos usuários já habituados naturalmente com a prática de feedback colaborativo”, completa.
Ele nota que a questão da segurança, entretanto, é um fator em relação ao qual o brasileiro apresenta grande desconfiança no que tange aos serviços de compartilhamento. “Ainda não é senso comum aceitar ‘estranhos’ para dar carona, por medo de assaltos, por exemplo. Este empecilho só será superado com o feedback constante dos usuários para construir uma base de dados confiável em relação à idoneidade de quem usa estes serviços”, acredita o executivo.
Bicicletas e caronas
Entre os quatro segmentos da mobilidade compartilhada apontados na pesquisa da Roland Berger, Bodewig destaca o das bicicletas como tendo mais chances de se desenvolver no Brasil: “As iniciativas de alguns grandes bancos em grandes metrópoles oferecendo bicicletas espalhadas pela cidade foram amplamente aceitas pela população em geral e alguns municípios já implementaram vias exclusivas para bicicletas pelas suas ruas como uma solução para a mobilidade”.
Um dos programas de compartilhamento de bicicletas de maior visibilidade no país atualmente é o do Banco Itaú. Em funcionamento desde 2011, está presente em sete capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte e Porto Alegre) e em Santiago no Chile. No Brasil, o projeto tem cerca de 750 estações e mais de 7,5 mil bicicletas, que já realizaram cerca de 9,2 milhões de viagens e ajudaram a evitar o lançamento de 3.727 toneladas CO2 na atmosfera, segundo informações da instituição. “O foco de atuação do Itaú neste tema [mobilidade urbana] é fomentar o amadurecimento da cultura de integração das bicicletas ao modelo de transporte das cidades de forma conjunta com o poder público e com a sociedade”, afirma o banco.
Para o diretor da Roland Berger brasileira, a já citada falta de segurança se apresenta como o principal empecilho para os outros três segmentos. “Os riscos de assalto de uma pessoa ‘estranha’ pegando carona, entrada de ‘não-moradores’ no condomínio para utilizar uma vaga são exemplos de abertura de brechas na segurança pessoal e patrimonial do usuário que precisam ser resolvidos.”
Bodewig diz também que os recentes movimentos contra o uso do aplicativo Uber (classificado no estudo da consultoria como um modelo de compartilhamento de caronas) em cidades como São Paulo e Brasília são um exemplo claro de que empresas de compartilhamento precisam lidar melhor com as regulamentações para habilitar suas soluções no mercado brasileiro.
A norte-americana Uber chegou ao Brasil em 2014 e opera no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília. O aplicativo, que faz a intermediação entre usuários e motoristas de carros particulares, não abre seus números no Brasil, mas informa que, nas mais de 300 cidades onde está presente no mundo, seus parceiros fazem mais de 1 milhão de viagens por dia. Sobre as resistências que vem enfrentado, principalmente de taxistas, a empresa argumenta que a inovação é fundamental para o desenvolvimento das cidades: “A Uber segue conversando com as autoridades para criar uma regulação que contemple a inovação e a economia compartilhada. Mais do que isso, a Uber defende que os usuários têm o direito de escolher o modo pelo qual desejam se movimentar pela cidade”.
Carros
Em termos de compartilhamento de carros, há alguns modelos em funcionamento hoje no país. A Zazcar, criada em 2013, trabalha com o aluguel de carros por hora ou por dia na cidade de São Paulo, com 50 pontos de retirada/entrega de veículos – pretende chegar aos 150 até o final de 2016. Para utilizar o serviço, o usuário se cadastra no site, retira um cartão em um dos pontos de distribuição da empresa, faz a reserva do veículo desejado por meio do site ou aplicativo e busca o carro em um dos pontos de retirada, desbloqueando-o com o cartão. É cobrada uma mensalidade e taxas por hora e quilômetro rodado.
Segundo informações da Zazcar, ela é a primeira a trabalhar com o compartilhamento de carros na América Latina e no Brasil. “Estamos iniciando essa indústria no país. É natural que ela demore um certo tempo para amadurecer. Mas não temos dúvida de que vai prosperar e o compartilhamento de carros vá se tornar uma das principais alternativas de mobilidade urbana do futuro. Essa tendência já tem sido demonstrada nos EUA e Europa”, afirma a empresa.
Há também o modelo de aluguel de carros diretamente entre pessoas físicas, com o qual trabalha o site Fleety, que funciona como intermediário entre donos de automóveis e pessoas que querem alugar um carro. Os donos anunciam o veículo no site, especificando o valor cobrado por hora, e são avisados quando há interessados no automóvel. O dono e o interessado, então, conversam diretamente e combinam a retirada e entrega do veículo.
E existem, ainda, projetos experimentais de compartilhamento de carros elétricos. O pioneiro neste modelo no país é o Porto Digital, no Recife, cujo sistema está em operação desde dezembro de 2014. Atualmente, o projeto conta com três carros da chinesa Zhidou (modelos ZD e ZDI) em três estações de retirada/entrega na capital pernambucana, e 60 usuários de teste. Ainda não há uma data fixa, mas em breve o projeto será aberto à população em geral. O usuário pagará uma mensalidade e uma taxa por corrida (cujo valor cai pela metade se ele oferecer carona a outro usuário quando reservar a corrida através do aplicativo do sistema), além de um valor extra por minuto se exceder os 30 minutos permitidos para utilização do veículo.
“É uma forma de incentivar o compartilhamento do veículo para diminuir a quantidade de carros nas ruas e, assim, contribuir com a preservação ambiental”, afirma o diretor executivo do Porto Digital, Leonardo Guimarães. Segundo informações do projeto, na Europa (onde há sistemas de compartilhamento de carros elétricos funcionando há alguns anos, como o Autolib, de Paris), cada exemplar compartilhado retira entre seis e nove carros tradicionais das ruas.
Projeto semelhante de compartilhamento de carros elétricos está sendo desenvolvidos em Porto Alegre, por uma startup formada por estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e a cidade do Rio de Janeiro planeja implantar um sistema na cidade.
Estacionamentos
Alguns aplicativos de estacionamento no país, além de permitirem a busca por estacionamentos comerciais, também trabalham com o compartilhamento de garagens privadas, funcionando como intermediários entre o dono do espaço e o motorista. Exemplos disso são o ParkingAki, o ezPark e o OndeParar.
O ParkingAki trabalha com o compartilhamento de estacionamentos em 18 cidades em cinco estados brasileiros, com 3.045 garagens e 1.019 motoristas cadastrados. O ezPark entrou em fase de testes no final do primeiro trimestre de 2015, e, neste momento, atua com mais ênfase nas cidades de São Paulo, Curitiba, Juiz de Fora, Santiago (Chile) e Miami (EUA). O OndeParar também testa o compartilhamento de estacionamentos e, por enquanto, tem 20 garagens cadastradas nesta modalidade.
O funcionamento dos três sistemas é semelhante: o dono da garagem se cadastra e fornece informações como endereço, número de vagas, dias e horários em que elas estão disponíveis e preço que deseja cobrar. Quem anuncia a vaga deve estar ciente das eventuais restrições impostas pelo local – muitos condomínios proíbem o estacionamento de não-moradores, por exemplo. O aplicativo ou site permite a busca pelas vagas cadastradas, e fica com um percentual da transação entre o motorista e o dono da garagem.
As três empresas acreditam no crescimento do modelo de compartilhamento de estacionamentos no Brasil. “Temos comprovado isso a cada dia de operação com o ParkingAki, além do fato de que outros modelos, como Airbnb, têm sido um sucesso no Brasil”, diz Felipe Taveira, co-fundador do ParkingAki. Luis Carlos Botelho Lucas, sócio e fundador do OndeParar, enxerga um grande potencial “em locais próximos a eventos, por exemplo, um estádio de futebol, onde várias pessoas já alugam suas garagens hoje, porém, proporcionaremos vários diferenciais, como reserva e pagamento antecipado”. Luiz Candreva, fundador e CEO da ezPark, observa que “os maiores expoentes atuais da Sharing Economy, Uber e Airbnb, surgiram em momentos de aguda crise econômica em seu mercado de origem (EUA). Nesses períodos, novas fontes de receita e de potencial economia, para pessoas e empresas, forçam a curva de adoção e a procura por essas novas soluções. O Brasil atravessa umas das piores crises econômicas de sua história recente, e certamente veremos o crescimento desse tipo de economia em que a ezPark está também inserida”.
Martin Bodewig, no entanto, não acredita que o mercado brasileiro já esteja preparado para viabilizar o compartilhamento de estacionamentos. “Apesar da falta gritante de vagas que existe nos grandes centros urbanos, a questão da segurança realmente é um fator de grande impedimento para a proliferação da mobilidade compartilhada no Brasil. De fato, será muito difícil algum condomínio aceitar a entrada de ‘estranhos’ para utilizar uma vaga de um morador dado a brecha na segurança que essa operação irá oferecer a todos os outros moradores.”
Para o executivo, em casas a probabilidade de adesão ao compartilhamento pode ser maior, “mas será focada em algumas regiões específicas da cidade, uma vez que muitos distritos comerciais onde a demanda será maior por vagas já são ocupados por grandes estacionamentos ou prédios comerciais que dificilmente aderirão ao compartilhamento”.
*matéria publicada na Revista Parking Brasil. Para ler a revista completa, clique aqui